1 |
O burburinho cessou. Fez-se um silêncio reverente quando Mãe Cici, vestida de branco, apoiada em uma bengala, mas caminhando com garbo, entrou pontualmente às 19h00 da quarta-feira (15/05) no auditório do Centro Cultural Vale do Maranhão (CCVM). Trazia se |
2 |
Nascida no Rio de Janeiro, Nanci de Souza Silva, a Mãe Cici, filha de Oxalá – o orixá supremo, criador do universo – mudou de mala, cuia, atabaques e agogôs para o terreiro de Lauro de Freitas (BA), em 1971, levando com ela os cantos que destacam as propr |
3 |
– Faltou mencionar meu pai Fatumbi – ela disse singelamente e foi logo atendida. |
4 |
Fatumbi é o nome religioso do etnólogo e fotógrafo franco-brasileiro Pierre Verger, que nasceu em Paris em 1902 e renasceu no Benin no Oeste da África. Convertido ao candomblé, residiu durante 50 anos na Bahia, onde atuou como professor da UFBA e ogã do T |
5 |
Essa mestra griô Ebomi do Terreiro Ilê Axé Opó Aganju, que já percorreu o Brasil e países da Europa, África e Caribe contando histórias afro-brasileiras, quase sempre acompanhadas de música e dança, abria agora a semana de museus na mesa “Tradição Oral, p |
6 |
A letra e a palavra |
7 |
Mãe Cici se dirigiu a mim, organizando a ordem das falas: |
8 |
– Você começa, porque os indígenas estavam aqui antes dos europeus e dos africanos – disse. Obedeci, mas em deferência a ela comecei com o relato mencionado na crônica sobre dona Fiota da comunidade quilombola do município de Bom Despacho (MG), que discut |
9 |
Conheci dona Fiota em março de 2006, em Brasília, durante seminário sobre a diversidade linguística. Ela se expressou na Língua do Negro da Costa, de origem Banto, conhecida como “Gira da Tabatinga”, que as crianças estavam esquecendo. Lei de 2003 sobre a |
10 |
– Ah, não sabia que era a senhora. Não pago, porque legalmente não posso contratar professor analfabeto. A senhora é analfabeta. Se pagar, posso ser preso. |
11 |
Ela botou o dedinho na cara dele e disse: |
12 |
– Eu não tenho a letra, tenho a palavra, que é mais do que a letra. |
13 |
Diante de tal argumento, ele pagou. Nem foi preso. E ela continuou ensinando as crianças de ensino fundamental e médio, combatendo o tratamento de analfabeto dado a pessoas das sociedades de tradição oral sem escrita alfabética, consideradas como carentes |
14 |
A escrita alfabética assumiu o poder nas sociedades letradas, onde em todas as instituições só vale o que está escrito: na legislação, no judiciário, nas transações bancárias e comerciais, no jogo do bicho e até na palavra de Deus registrada nas Sagradas |
15 |
Entrelinhas e entrefalas |
16 |
Existem pessoas que podem reconhecer letras, sílabas, palavras e frases, mas não são capazes de compreender o seu significado. São leitores rasos que acreditam piamente, ao pé da letra, naquilo que está escrito, não entendem que o processo crítico de leit |
17 |
Da mesma forma, existem pessoas que ouvem a fala, mas não sabem entender o que ela está dizendo, não leem nas “entrefalas”. Quem não sabe ler o discurso oral pode ser designado, por analogia, como “analfabeto funcional da oralidade”. Exemplifiquei com alg |
18 |
Dois grandes cientistas do séc. XIX, o botânico Martius e o zoólogo Spix, que viajaram em 1819-1820 pelo rio Amazonas, consideraram “fantasioso” o mito Tikuna de origem da vida, que fala de um único ser saído da água e do qual descendem os demais. A hipót |
19 |
Hoje, os biólogos ensinam nas universidades e nas escolas que toda vida existente na terra descende de um único ancestral, de um organismo unicelular que deu origem a todas as espécies vivas, visão mais próxima do mito Tikuna do que da ciência de Martius |
20 |
Lendo oralidades |
21 |
Já os Tukano do rio Negro eram alfabetizados em oralidade, como relatado pelo padre salesiano Casimiro Beksta no caso de uma criança mordida por cobra numa comunidade do alto Uaupés. Era preciso transportá-la para um hospital em São Gabriel da Cachoeira, |
22 |
– Eu levo o barco – se ofereceu um jovem tukano. |
23 |
– Você já fez essa viagem? – perguntou Casimiro. |
24 |
– Eu nunca, mas os antigos fizeram o trajeto na cobra-canoa e eu conheço os wametisé – os lugares por onde a cobra-grande passou, meu avô me contou a história das casas de transformação. |
25 |
A narrativa mítica, desqualificada como “invencionice” pelos analfabetos da oralidade, registra as referências geográficas, as marcas e os sinais nas pedras, nas praias, nas serras, nas ilhas e acabou sendo usada pelo jovem como um mapa de navegação. Orie |
26 |
A sogra do Jacamim recolhida pelo botânico Barbosa Rodrigues é outra história que circula no rio Negro (AM), trata-se de um minitratado de ornitologia dos pássaros da Amazônia. Parte desse conhecimento, que foi satanizado por não se enquadrar dentro dos c |
27 |
Barbosa Rodrigues viveu no Amazonas, conheceu diferentes etnias e aprendeu o Nheengatu, que lhe permitiu registrar a ciência indígena. Sua grande sacação foi perceber, no século XIX, que numa sociedade sem escrita alfabética, mas com forte tradição oral, |
28 |
Mãe Cici começou sua fala também de 20 minutos, contando uma história dos Wapixana de Roraima sobre o sapo que queria devorar os grilos. Depois centrou suas reflexões sobre as culturas de matriz afro-brasileira. Cantou e, na ausência de instrumento musica |
29 |
No final, a fala sobre processos educativos e cultura popular esteve a cargo da professora Dulce Ferreira do Núcleo de Extensão e Pesquisa com Comunidades Rurais, Negras, Quilombolas e Indígena da UFMA. Mas o evento prosseguiu no dia seguinte com a Oficin |
30 |
O evento foi encerrado no terceiro dia pela Mãe Cici, uma vez mais com Contação de histórias e contos afro-brasileiros, que não pude assistir por ter me deslocado para a Terra Indígena Awá Guajá, onde participei de uma oficina com professores bilingues, o |